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O papel dos corretores de café da Praça de Santos

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    gdock
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A cidade de Santos, desde meados do século XIX, consolidou-se como o mais importante centro de comercialização e exportação de café do Brasil, transformando-se na chamada Praça de Santos.


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Introdução


A cidade de Santos, desde meados do século XIX, consolidou-se como o mais importante centro de comercialização e exportação de café do Brasil, transformando-se na chamada Praça de Santos. Nesse ambiente, surgiram e se destacaram os agentes auxiliares do comércio - corretores de café, fiéis de armazéns, leiloeiros, trapiches e intermediários -, responsáveis por conferir credibilidade, segurança e transparência às negociações.


O presente estudo tem por objetivo analisar, sob uma perspectiva histórica e jurídica, o papel desses agentes entre 1850 e 1920, enfatizando a evolução normativa antes e após o advento do decreto Federal 1.102, de 21/11/1903, que disciplinou os armazéns gerais e seus reflexos no comércio cafeeiro. Também se examinará a transição dos pregões em praça pública para espaços institucionais e, por fim, os reflexos dessa tradição no Direito contemporâneo.


1. O comércio cafeeiro e os agentes auxiliares do século XIX


1.1. Corretores de café


No período de 1850 a 1900, os corretores de café da Praça de Santos desempenhavam função essencial como intermediários oficiais entre produtores, exportadores e comerciantes. Eram profissionais credenciados pela Junta Comercial, atuando com fé pública, responsabilidade e imparcialidade. A confiança no corretor conferia segurança aos contratos de compra e venda, refletindo diretamente no prestígio internacional do café brasileiro.


O Código Comercial de 1850 (lei 556, de 25/6/1850) regulava em seus arts. 36 a 59 a atividade dos corretores, prevendo seus deveres de imparcialidade, obrigação de registros e responsabilidade civil pela veracidade das informações prestadas.


1.2. Fiéis de armazéns


Os fiéis de armazéns eram responsáveis pela guarda e conservação das mercadorias depositadas, especialmente sacas de café. Tinham a função de garantir a integridade física e quantitativa do produto, atuando como depositários legais perante os comerciantes e compradores.


1.3. Trapiches


Os trapiches constituíam estruturas portuárias de armazenamento e movimentação de mercadorias, situados à beira-mar ou próximos aos cais. Antes da construção dos armazéns gerais regulamentados, os trapiches representavam o elo físico indispensável entre o transporte marítimo e o comércio terrestre. Ali, o café era depositado, conferido, pesado e preparado para exportação.


Os trapiches operavam em sistema de locação e custódia, funcionando como antecessores diretos dos armazéns gerais posteriormente regulamentados pelo decreto 1.102/1903.


1.4. Leiloeiros e "traidores"


Os leiloeiros exerciam função formalizada de venda em hasta pública, enquanto os chamados "traidores" (intermediários informais) operavam à margem da regulamentação, articulando negócios diretos nas praças e ruas de Santos.


2. Os pregões em praça pública


Até o início do século XX, as negociações de café ocorriam em pregões realizados em locais públicos - ruas, praças ou diante dos trapiches e armazéns. Nessas ocasiões, os corretores anunciavam preços, quantidades e qualidades das sacas, em uma dinâmica de viva voz que assegurava publicidade e transparência às operações.


Esse modelo vigorou até a institucionalização da Bolsa Oficial de Café de Santos, fundada em 1914, que passou a centralizar os pregões em espaço formal e estruturado, dotado de regulamentos próprios e vinculado às práticas jurídicas já sedimentadas pelo decreto 1.102/1903.


3. O decreto 1.102/1903 e a institucionalização dos armazéns gerais


O decreto Federal 1.102, de 21/11/1903 introduziu um marco jurídico fundamental:


Regulamentou os armazéns gerais como estabelecimentos destinados ao depósito, guarda e conservação de mercadorias;

Criou o sistema de conhecimento de depósito e warrant, títulos de crédito representativos das mercadorias depositadas;

Estabeleceu a figura do fiel de armazém como depositário responsável, sujeitando-o a responsabilidade civil e penal em caso de desvio ou fraude.

Essa inovação trouxe segurança jurídica às operações financeiras e comerciais, permitindo que o café depositado em Santos fosse utilizado como garantia em operações de crédito junto a bancos nacionais e estrangeiros.


4. Evolução legislativa posterior


4.1. Código Comercial de 1850 ao CC/02


O Código Comercial de 1850 disciplinava originalmente os corretores, trapiches e fiéis. Contudo, com a entrada em vigor do CC/02 (lei 10.406/02), a corretagem passou a ser regida pelos arts. 722 a 729, reforçando a boa-fé, a obrigação de mediação imparcial e a remuneração.


4.2. Consolidação da atividade dos armazéns gerais


O decreto 1.102/1903 manteve-se como principal regulamento para os armazéns gerais, complementado por legislações posteriores, especialmente no campo tributário e aduaneiro (ex.: Regulamentos de ICMS estaduais e o Regulamento Aduaneiro - decreto 6.759/09).


4.3. Integração logística moderna


No século XX e XXI, a figura dos armazéns gerais foi ampliada para integrar a cadeia logística sob o regime de transporte multimodal (lei 9.611/1998 e decreto 3.411/00), consolidando a relevância histórica do sistema inaugurado em Santos.


5. Situação contemporânea e herança histórica


Atualmente, embora o pregão em praça pública tenha sido substituído por sistemas eletrônicos e bolsas de mercadorias, a essência dos agentes auxiliares do comércio permanece.


Os corretores de café foram sucedidos pelas corretoras financeiras e de commodities.


Os trapiches cederam lugar a terminais portuários modernos e armazéns logísticos integrados.


O fiel de armazém continua existindo, agora regulado e fiscalizado por legislações mais complexas, como o decreto 1.102/1903 (ainda vigente) e normas fiscais estaduais.


A tradição de Santos, iniciada nos trapiches e pregões públicos do século XIX, permanece viva como pilar da credibilidade do comércio internacional brasileiro.


Quadro cronológico comparativo (1850 - Até hoje)


Período agentes auxiliares atividades e estrutura marco normativo/evolução jurídica


1850-1903 (pré-decreto 1.102/1903) Corretores de interior; fiéis de armazéns; trapiches; leiloeiros; traidores (intermediários informais) pregões públicos em praças ("Quatro Cantos"), com amostras, negociações em viva voz e atuação informal. Trapiches atuam como depósitos interfacing porto-armazém. Código Comercial de 1850 (lei 556/1850, arts. 36-59) regula atividades dos corretores, ainda na base de usos e costumes mercantis.


1903 (decreto 1.102/1903) Formalização dos armazéns gerais incorporando trapiches alfandegados como equivalentes normativos regularização dos depósitos, emissão de título (conhecimento de depósito e warrant), padrões de pesagem, registro e publicidade. Decreto Federal 1.102/1903: regras para armazéns gerais, emissão de warrant e conhecimento de depósito, equiparação legal a trapiches e docas aduaneiras.


1914-1920 (Formação da Bolsa Oficial de Café) Corretores de Bolsa surtem aos pregões institucionalizados; trapiches integrados em armazéns formais transferência dos pregões de rua para estrutura formal da Bolsa Oficial de Café, com pregões regulamentados. Criação da Bolsa Oficial de Café por lei estadual 1.416/1914, com estrutura própria em prédio adaptado a modos oficiais (1917 instalação; edifício em 1922).


Século XX - (Segunda metade/contemporaneidade) Corretores financeiros e de commodities; administradores de armazéns; compliance; operadores de logística moderna sistemas eletrônicos substituem pregões públicos; armazéns gerais fortalecidos para crédito; trapiches físicos substituídos por centros logísticos integrados decreto 1.102/1903 permanece aplicável, complementado pelas leis: CC/02 (arts. 722-729); lei 9.973/00, lei 11.076/04 (CDA/WA); decreto 6.759/09 (regulamento aduaneiro); IN DREI 52/22 (controle registral).


Observações técnicas e fundamentações jurídicas


O decreto 1.102/1903 foi crucial ao institucionalizar os armazéns gerais e permitir que trapiches e docas aduaneiras, com autorização, emitissem warrant e conhecimento de depósito, aproximando logística e crédito.


A Bolsa Oficial de Café de Santos, criada em 1914 e consolidada com sede em 1922, representou a migração do comércio do café das ruas para estrutura formalizada, onde a corretagem se profissionalizou e os pregões passaram à modalidade institucionalizada.


No presente, embora os pregões públicos não mais existam da forma tradicional, seus princípios foram transpostos para sistemas digitais; os armazéns gerais continuam regulados pelo decreto de 1903 e aperfeiçoados por legislações modernas do Direito Civil, agronegócio e aduaneiro.


Conclusão


A análise histórica demonstra que os corretores de café da Praça de Santos, juntamente com trapiches, fiéis de armazéns e leiloeiros, foram fundamentais para a consolidação do comércio cafeeiro nacional. Sua atuação permitiu o desenvolvimento de mecanismos de confiança e segurança que culminaram no decreto 1.102/1903, marco jurídico que até hoje disciplina os armazéns gerais no Brasil.


Essa trajetória evidencia a transição da prática mercantil fundada em usos e costumes para uma realidade juridicamente estruturada, cujos reflexos alcançam o comércio contemporâneo, a logística portuária e as operações aduaneiras. A história dos corretores e trapiches de Santos constitui, assim, uma herança viva, que liga o passado imperial à modernidade do Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro no século XXI.


__________________


Fundamentação legal


Lei nº 556/1850 - Código Comercial (arts. 36 a 59) - agentes auxiliares do comércio.


Decreto Federal nº 1.102/1903 - armazéns gerais, fiéis de armazéns e títulos de crédito .


Lei nº 10.406/2002 - Código Civil (arts. 722 a 729) - corretagem.


Lei nº 9.611/1998 - transporte multimodal de cargas.


Decreto nº 3.411/2000 - regulamentação do transporte multimodal.


Decreto nº 6.759/2009 - Regulamento Aduaneiro - disciplina fiscal e aduaneira.



Ronaldo Paschoaloni

Especialista em Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro-UNISANTA; Perito Judicial -Credenciado pelo CRA-SP; Extensão Gestão Estratégica FGV-EAESP SP.Fundador GENERAL DOCK CONSULTORIA E LOGÍSTICA LTDA.


 
 
 

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