Armazéns gerais e emissão de warrant no Brasil: Uma reflexão técnico-jurídica
- gdock
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Armazéns gerais e emissão de warrant no Brasil: Uma reflexão técnico-jurídica sobre a longevidade do decreto Federal 1.102/1903 e sua função regulatória e de fomento ao crédito.
Introdução

Este artigo examina, em perspectiva histórico-jurídica, a perenidade do decreto Federal 1.102, de 21/11/1903 ("lei dos armazéns gerais"), seu núcleo principiológico e os instrumentos que instituiu - notadamente o conhecimento de depósito e o warrant -, explicitando como esse regime serviu, ao longo de mais de um século, como mecanismo regulador e fomentador de crédito nos mercados interno e externo. Parte-se do texto legal originário, de vigor ainda atual, e reconstroem-se marcos cronológicos em que tais títulos e o modelo jurídico de armazenagem influenciaram a liquidez de estoques, o financiamento à produção, a mitigação de risco e o equilíbrio concorrencial, culminando em aperfeiçoamentos setoriais (agronegócio, comércio exterior e tributação).
1. Marco normativo originário (1903): Desenho institucional e títulos
O decreto 1.102/1903 instituiu um regime especial de armazenagem e disciplinou a emissão de dois títulos gêmeos, unidos e destacáveis: o conhecimento de depósito (representativo da mercadoria) e o warrant (garantia real/penhor sobre a mesma mercadoria). O sistema previu: (i) matrícula e fiscalização pelas Juntas Comerciais; (ii) livros próprios e publicidade; (iii) padronização tarifária; (iv) responsabilidade objetiva ampliada do armazém; (v) prescrição curta para pretensões indenizatórias; (vi) depósito "misto" (fungível) com regras de amostras; (vii) endosso com indicação do crédito no primeiro endosso do warrant; e (viii) mecanismos de venda/leilão para satisfação do crédito garantido.
1.1. Fiscalização, livros e prazos
O decreto exige livro de entrada e saída e sujeita os armazéns à fiscalização imediata das Juntas Comerciais, com balanços periódicos e publicidade mínima. Estabelece prazo-padrão de depósito e, vencido, autoriza a venda pública, com destinação do produto conforme ordem de créditos.
1.2. Responsabilidade e prescrição
A responsabilidade do armazém abrange guarda, conservação e entrega "pronta e fiel"; a indenização prescreve em três meses contados do dia em que a mercadoria foi ou deveria ter sido entregue, regime de especialidade que a jurisprudência reafirma.
1.3. Depósito misto e fungibilidade
O art. 12 autoriza a guarda "misturada" de mercadorias da mesma natureza e qualidade, impondo ao armazém a obrigação de restituir mercadoria equivalente (e não a própria), com responsabilidade mesmo em caso de força maior, reforçando a lógica de fungibilidade que sustenta a negociabilidade dos títulos.
1.4. Emissão, endosso e execução do crédito
Os títulos são "unidos, mas destacáveis", e o primeiro endosso do warrant deve declarar valor, juros e vencimento; ao portador do conhecimento é facultada a retirada da mercadoria antes do vencimento da dívida mediante consignação do valor (com aviso ao endossatário do warrant). No inadimplemento, o portador do warrant promove leilão extrajudicial, independente de formalidades judiciais, preservando a efetividade da garantia real.
1.5. Integração com alfândegas, docas e ferrovias
O diploma equipara, mediante autorização, docas, entrepostos e trapiches alfandegados a armazéns gerais para efeito de emissão de títulos - ponte normativa precoce entre armazenagem privada e comércio exterior.
2. Valores e instrumentos do decreto 1.102/1903 (núcleo perene)
(a) Publicidade e transparência - matrícula, regulamentos, tarifas e livros; (b) Padronização operacional - pesagem, medição, amostras, prazos; (c) Títulos escriturais/cartulares com endosso - circulação segura do crédito; (d) Preferências e ordem de satisfação - proteção clara do credor pignoratício; (e) Fungibilidade - depósito misto e equivalência qualitativa; (f) Responsabilidade reforçada - inclusive por atos de prepostos; (g) Prescrição abreviada - estabilidade e previsibilidade de riscos; (h) Conexão aduaneira - possibilidade de emissão em recintos alfandegados. Esses vetores explicam a longevidade normativa e a vocação do sistema para mitigar risco de crédito e reduzir custo de capital.
Nota sobre subsidiariedade: o CC/02 disciplina o depósito e o penhor de modo geral, aplicando-se subsidiariamente ao regime especial do decreto 1.102/1903, por força do princípio da especialidade.
3. Linha do tempo - quando os "armazéns gerais - emissão de warrant" foram reguladores e fomentadores de crédito 1903
- Institucionalização do sistema
Cria-se o pilar jurídico para emissão de títulos representativos de mercadorias depositadas, com circulação por endosso e execução rápida, fomentando o uso de estoques como colateral e reduzindo assimetrias informacionais.
1906 - Política de valorização do café (Convênio de Taubaté)
As políticas de sustentação de preços do café pressupunham armazenagem estruturada para retenção de estoques e operações de financiamento lastreadas em mercadorias (com apoio de depósitos e títulos), o que evidenciou o papel sistêmico do regime dos armazéns gerais.
1952 - Décadas seguintes - criação do IBC e instrumentos de política setorial
Com a lei 1.779/1952, o Instituto Brasileiro do Café passou a executar política econômica para o setor, em contexto em que a infraestrutura de armazenagem e os títulos sobre mercadorias eram vetores operacionais para equalizar oferta, preço e crédito.
2000 - 2001 - Sistema de armazenagem de produtos agropecuários (lei 9.973/00 e decreto 3.855/01)
Reforçam-se padrões contratuais e de segurança de custódia, preparando terreno para a modernização dos títulos de depósito agropecuário e para a interoperabilidade com sistemas públicos de certificação e fiscalização.
2002 - Crédito bancário com caução de conhecimento de depósito e warrant
O CMN/BCB explicita o uso de conhecimento de depósito e warrant como caução em operações de crédito rural/comercial (ex. café), sinalizando a plena bancarização do modelo e seu papel pró-liquidez.
2004 em diante - Títulos do agronegócio (lei 11.076/04): CDA/WA
Instituem-se o CDA - Certificado de Depósito Agropecuário e o WA - Warrant Agropecuário, sucedâneos setoriais que preservam a lógica jurídico-econômica do modelo de 1903 (depósito + penhor), com seguro obrigatório e integração com o mercado financeiro (CDCA, LCA, CRA).
2009 - presente - Comércio exterior e recintos alfandegados
O regulamento aduaneiro (decreto 6.759/09) disciplina o entreposto aduaneiro (arts. 404-419), regime em que a custódia alfandegada dialoga com a função econômica dos armazéns gerais previstos desde 1903, mantendo a coerência entre controle fiscal/aduaneiro e a utilização econômica do estoque como ativo financeiro.
2019-2021 - Nova arquitetura de financiamento
A modernização do crédito no agronegócio (lei 13.986/20 - "lei do agro") e a criação do FIAGRO (lei 14.130/21) ampliam o canal de securitização e investimentos em lastros originados na produção e armazenagem, fortalecendo a ponte entre depósito garantido e mercado de capitais.
4. Interações setoriais e aduaneiras: O decreto como ponte entre logística e crédito
O art. 4º do decreto 1.102/1903 permite que docas, entrepostos e trapiches alfandegados, uma vez autorizados, adquiram a qualidade de armazéns gerais, emitindo títulos sobre mercadorias sob controle aduaneiro - desenho que antecipa a operação do entreposto aduaneiro e estimula a conversão de estoques em garantias sem fricções jurídicas. O regulamento aduaneiro de 2009 e os manuais da RFB consolidam o regime do entreposto como instrumento de logística e de gestão tributária (suspensão condicionada), sem romper a lógica de integridade, rastreabilidade e documental que viabiliza o uso financeiro dos estoques.
5. Tributação estadual (exemplo SP): Neutralidade operacional que favorece a liquidez
A disciplina do RICMS/SP, Anexo VII, Capítulo II (Armazém Geral), operacionaliza remessas e retornos com não incidência (e controles específicos de NF e CFOP), reforçando neutralidade fiscal nas remessas a depósito e saídas por conta e ordem, desde que observados requisitos (registro como armazém geral, emissão própria de documentos, controle por depositante etc.). Tal tratamento evita efeitos-cascata no fluxo físico e contábil e preserva a liquidez dos estoques como garantia creditícia.
Autoridades fiscais paulistas, em consultas e decisões, reiteram que apenas armazéns gerais regularmente habilitados podem usufruir do regime, vedando sua extensão a depósitos comuns - o que incentiva conformidade e padronização de riscos.
6. Jurisprudência selecionada
6.1. Responsabilidade e prescrição trimestral (art. 11 do decreto 1.102/1903)
O STJ, ao julgar o REsp 1.217.701/TO, reconheceu a aplicação da prescrição trimestral do art. 11 em pretensões indenizatórias decorrentes de depósito em armazém geral, reafirmando a especialidade do decreto frente ao CC. Tribunais regionais seguem a orientação, aplicando o prazo exíguo a pleitos de restituição/ressarcimento por perda ou avaria.
6.2. Alcance subjetivo do prazo do art. 11
A delimitação do sujeito passivo (armazém geral versus outros operadores logísticos/portuários) tem sido objeto de controvérsia recente em cortes estaduais - em geral restringindo a prescrição do art. 11 às hipóteses estritas do armazém geral tipificado no decreto, o que reforça a importância da qualificação jurídica correta da atividade.
6.3. CDA/WA, seguro obrigatório e integridade do lastro
No agronegócio, a jurisprudência do STJ também tem enfrentado temas correlatos a CDA/WA (lei 11.076/04), como garantias, seguro e execução, enfatizando a necessidade de cobertura mínima e integridade do lastro para preservação do mercado.
7. Inter-relação com títulos do agronegócio (CDA/WA) - continuidade e especialização
A lei 11.076/04 é leitura complementar indispensável ao decreto 1.102/1903: o CDA e o WA reproduzem, para produtos agropecuários, a lógica "depósito + penhor" com endosso completo e seguro obrigatório (art. 22, em correlação com a lei 9.973/00). O sistema permite circulação financeira e execução extrajudicial do lastro, além de articular-se com CDCA, LCA e CRA, integrando o mercado de capitais.
Seguro obrigatório - O art. 22 da lei 11.076/04, em remissão ao art. 6º, § 6º, da lei 9.973/00, contém exigências de cobertura que reduzem risco sistêmico e protegem credores e depositantes (inclusive com cláusulas específicas para armazéns públicos).
8. O decreto 1.102/1903 "sem mudanças"? Observações de técnica legislativa
Embora o núcleo regulatório do decreto 1.102/1903 permaneça substancialmente incólume e aplicável, o ecossistema normativo à sua volta foi aperfeiçoado por leis setoriais (lei 9.973/00; lei 11.076/04), normas aduaneiras (decreto 6.759/09) e regulação de ofícios (IN DREI 52/22), sem revogar o regime clássico de armazém geral e seus títulos. A longevidade decorre do desenho funcional robusto do decreto - publicidade, fungibilidade, títulos circuláveis, execução rápida e fiscalização -, que se mostrou compatível com sucessivas camadas de especialização.
9. Aspectos de compliance registral e profissional (IN DREI 52/22)
A IN DREI 52/22 disciplina o exercício das profissões conexas (administrador de armazém geral, trapicheiro, leiloeiro etc.), prevendo, entre outros pontos, que prepostos de administradores de armazéns gerais somente podem entrar em exercício após arquivamento do ato de nomeação na Junta Comercial e definindo hipóteses de cancelamento de matrícula, o que reafirma a centralidade do controle registral para a higidez do sistema.
10. Impactos econômicos: Por que o modelo fomenta crédito e equilíbrio de mercado
Colateralização eficiente: A separação "conhecimento (posse) / warrant (penhor)" permite converter estoque em garantia líquida, com custos de transação baixos e execução célere.
Mitigação de risco operacional: Responsabilidade reforçada do armazém e prescrição curta incentivam boas práticas de custódia e reduzem litígios prolongados.
Neutralidade fiscal logística (ex. SP): A disciplina do ICMS em remessas a armazém geral evita tributação prematura, preservando capital de giro e competitividade.
Integração aduaneira: Regimes como entreposto aduaneiro permitem sincronizar prazos logísticos e tributários com oportunidades de financiamento e venda externa.
Mercado de capitais do agro: CDA/WA e títulos correlatos canalizam poupança privada para a produção, mantendo a coerência conceitual do sistema de 1903.
11. Conclusão
A longevidade do decreto 1.102/1903 revela um projeto de engenharia jurídica sólido: títulos claros, regime de responsabilidade definido, prazos eficazes, publicidade e fiscalização - um alicerce institucional que viabilizou, ao longo de mais de um século, fomento ao crédito, redução de custos de capital e equilíbrio de mercado. O agronegócio e o comércio exterior aprofundaram e especializaram essa base com a lei 9.973/00, a lei 11.076/04 e o regulamento aduaneiro, sem desfigurar o modelo clássico - antes, confirmando-lhe a utilidade. Para operadores logísticos, armazéns gerais, instituições financeiras, exportadores e formuladores de política pública, o recado é perene: estoques confiáveis e titulizados são moeda de crédito e viga mestra de cadeias eficientes.
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Decreto nº 1.102/1903 - "Lei dos Armazéns Gerais" (texto oficial e publicação original).
Convênio de Taubaté (1906) - contexto histórico oficial (FGV/CPDOC).
Lei nº 1.779/1952 - Cria o IBC; ementário histórico do MAPA.
Lei nº 9.973/2000 e Decreto nº 3.855/2001 - Sistema de Armazenagem.
Lei nº 11.076/2004 - CDA/WA e títulos do agronegócio (incl. art. 22 - seguro).
Resolução CMN nº 3.008/2002 - Crédito com caução de conhecimento de depósito/warrant.
Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro) - arts. 404-419 (entreposto aduaneiro).
Manual/portal RFB - Entreposto Aduaneiro (bases normativas).
IN DREI nº 52/2022 - exercício das profissões correlatas e matrícula.
RICMS/SP - Anexo VII, Cap. II - regime do armazém geral.
STJ, REsp 1.217.701/TO (DJe 28/6/2016) - prescrição trimestral; precedentes correlatos.
Ronaldo Paschoaloni
Especialista em Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro-UNISANTA; Perito Judicial -Credenciado pelo CRA-SP; Extensão Gestão Estratégica FGV-EAESP SP.Fundador GENERAL DOCK CONSULTORIA E LOGÍSTICA LTDA.
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